sexta-feira, 24 de abril de 2009

Um verdadeiro Buendía

Uma viagem. Na véspera do aniversário do livro, o Centro Municipal lotou de juventude. Incrédulos, encontraram bebidas, belisquetes, um circo armado, cadeiras bem colocadas, uma tenda de tapetes persas, muitas almofadas fofinhas, coloridas, feitas pelas meninas do Morro da Cruz. Ninguém acreditava que a Maratona Literária iria se criar. Todos apostavam timidamente, quase negando, colocando a culpa naquele maluco do carioca que desabou em Porto Alegre há um par de anos. Mas estavam lá tendinhas de erva-mate, café e suco à vontade, e uma plateia descolada e feliz.

Direto do paraíso tropical, onde toda a loucura é permitida, veio Weller. Enfunando com o vento as mentes preguiçosas dos gaúchos, tal as ovelhas em torno do pastor, prestimosas, fortes e cheias de vontade, lhes faltando apenas a proposição. Eis o que há de mais raro: a vez de aríete.

A cada tempo, durante a Maratona, Daniel Weller chamava um grupo, apresentando-os, se pessoas públicas, e elogiando sua participação. Estudantes de Letras pincelavam o ar com olhos brilhantes. O livro não está morto afinal. Não está fadado aos longos debates e ensaios, com apreciacões herméticas e teóricas, sobre um prazer que estava ali, na reunião e na noite que prometia ser longa. E os leitores iniciaram o cortejo das palavras. Cada um empoava-se à sua maneira, e a voz ecoava pelo hall, cheio de barulhos. Inacreditáveis arranjos musicais eram derramados leitura adentro a cada vez que abriam a porta da Sala Álvaro Moreira. O espetáculo de dança gratuito no Renascença completava a pajelança. A palavra era brindada por todas as artes. Era só dizer ao povo: vai que é tua, e a galera entrou com bola e tudo.

No meio do salão, confortavelmente decorado com tapetes e almofadas, atrizes despetalavam fitinhas amarelas e corriam feito musas, enquanto a um canto, o livreiro aproveitava a excelente maré, e vendia García Márquez como não havia feito nos últimos anos. O povo lê e curte.

Até alta noite, houve intervalos regados a músicas ao vivo, com direito a passos de dança. O congraçamento estava completo. Weller deve significar velas ao vento, velejar em grupo ou liderar uma manada de malucos beleza.

Fu Lana não iria perder essa. Já na entrada, com a boca aberta, parecia estar em Madrid, de onde veio a ideia de fazer uma leitura virar um espetáculo. Amou a função. Nascera para aquilo. Foi uma adolescente que acreditava nas confusões coletivas, com muita energia e produção mental. Leu, é claro, dando a sua melhor ênfase à parte em que a dupla de meninos Buendía tomou uma poção para colocar as lombrigas para fora. E lhe parecera tão natural. Regozijavam-se por apresentar os animais retirados de seus ventres, e, na verdade, poderiam assim enconder suas outras perturbações, estas verdadeiras e secretas, e tinham-se por curados.

Fu Lana não virou a noite. Apesar de maratonista de fé, acometeu-se de uma irrefreável mania de cotidiano e declinou. Dizia: isso não vai durar até o outro dia. Não pode. Não é possível. É viagem do Daniel.

Dormiu com um olho aberto. Toda hora remexia-se culpada por não estar lá. Sete horas da manhã – acompanhava a claridade desde as cinco –, como se desejasse tanto até que acontecesse, a mensagem veio pelo celular: sete estão lendo. Tu vens? Levantou-se de imediato e enquanto digitava “tô indo”, meteu-se em roupas nem escolhidas, deixou um bilhete para a família e espantou a cozinheira que completava a mesa do café.

Escabelada, com olheiras, como se tivesse passado a noite em claro, dirigia e pensava: será possível que esses malucos vão conseguir? Chegou lá e apreciou o mesmo cenário de tapetes e fitinhas amarelas no chão, cartazes coloridos e um ar de fim de uma linda festa. Que não estava no fim. Disse: deixa comigo, pessoal, que estou inteira. Uma salva de palmas a recebeu e ela agarrou-se ao livro por algumas páginas. Depois de algumas rodadas, foram chegando mais pessoas, igualmente céticas, foram-se abrindo as portas e chegando os funcionários. O espaço voltava a ficar lotado.

E assim foi, continuando aquele verdadeiro aniversário do livro em 2009, na pequena Macondo, quer dizer, Porto Alegre. Onde o gelo poderia servir para construir as casas e onde até mesmo seria inventado o sorvete com a inserção de suco de frutas. Onde também há moças castas e de beleza estonteante e homens de fibra como os Buendía.

Fu Lana agora acredita nos estrangeiros, mesmo que sejam cariocas.


Clô Barcellos - coletiva.net - 23/04/2009

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